segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011
domingo, 27 de fevereiro de 2011
sábado, 26 de fevereiro de 2011
sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011
quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011
quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011
terça-feira, 22 de fevereiro de 2011
segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011
domingo, 20 de fevereiro de 2011
sábado, 19 de fevereiro de 2011
217 – das biografias, 60
O quinto pastel-de-belém parece ter produzido em Augusto um efeito anestésico. Ele continuou a comer os doces como que sem esforço, mas também, pensava Tomaso, aparentemente sem prazer. Sentados num café às margens do Rio da Prata, os dois recém conhecidos falavam sobre tudo ao mesmo tempo, ou seja, entendiam-se superficialmente falando sobre nada. “Se me permite, e esta sua vinda é devida a quê?”, perguntou Augusto em certo momento. “Tenho interesse por aves aquáticas”, explicou Tomaso ao fotógrafo, “eu vim observar os hábitos de uma espécie de pato que há aqui.” Augusto olhou intrigado: “Pois eu lamento decepcioná-lo, senhor, mas nessas águas o mais próximo de um pato que irá encontrar é um mamífero, um tipo de ornitorrinco”. Nisso, o homem retirou uma fotografia do bolso: “Eu mesmo fiz este registro. Está vendo? Um instante raro, mas característico desta nossa região: um ornitorrinco ao lado de um flamingo-de-pescoço-reto”. “De fato...”, Tomaso murmurou. E então coçou o queixo, observou o homem enfiar mais um pastel-de-belém na boca e pensou consigo como seria se tivesse rumado para a Flórida.
sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011
216 – das biografias, 59
Então, no começo do terceiro dia, Vera levantou-se do sofá capenga, abandonou a almofada listrada e a procura por um calço inédito, passou ao lado de Hélio e de outros visitantes erguendo os seios, tomou a marreta das mãos de Tomaso – que, atingindo umas cerâmicas, executava a sua parte da performance entre a churrasqueira e o banheiro – e pôs-se a destruir até o que devia restar inteiro. “Isto não é uma marreta”, gritava ela entre um golpe e outro, “é a Jovialidade! A Jovialidade!” E se dirigia ameaçadora para os presentes: “A Jovialidade é um risco!” – e rodava a marreta no ar – “A Jovialidade é tudo o que há!”. Todos saíram correndo. No tumulto, Hélio perdeu um pé do sapato. Vera ganhou uma história para contar, acabou detida e só foi liberada quando Tomaso convenceu as autoridades de que tudo estava desde o início programado.
quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011
215 – das biografias, 58
Quem sabe dizendo um pouco do seu passado possamos compreender a íntima motivação da polêmica performance de Vera. Filha de uma robusta fotógrafa polonesa com um esguio professor de patinação artística de descendência japonesa, quando ela nasceu ambos já eram de certa forma velhos. Sua mãe queixava-se de que seu pai arrastava os chinelos e andava a pino mas com tanta moleza quanto a luz do verão. O pai respondia de ombros, porque tanto fazia para ele ir do portão da rua à sala em uma hora ou um segundo, já que não tinha pressa, mas deslizava atento e naturalmente. Para a mãe, contudo, essa imagem – a do arrasto que ia do portão da rua à sala – era por demais conflitante: ao contrário do que ela via em uma fotografia, ali estava a fatal ausência de movimento, algo como a morte acolhida confortavelmente em sua própria casa, como a morte deslizando até o seu lado, dia a dia, com chinelos de flanela.
quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011
214 – das biografias, 57
Eis os únicos registros que ela guardou daquilo tudo. Estão desde então em seu quarto, na estante, ao lado de outras fotografias que são amargas e doces. E quando hoje ela conversa com Hélio sobre as suas experiências, ele fica muitas vezes em silêncio, bebe goles mais largos, alisa a toalha da mesa com a ponta dos dedos, com cuidado, perdido o olhar num ponto branco da parede branca. Havia para ela, naquela aposta, um sentido quase literal, uma estratégia e uma esperança: oferecer-se, nua em pêlo, ao enfrentamento do olhar do mundo; mas ontem, assim como agora, o que parece restar é um estranhamento fechado em si mesmo, uma completa impossibilidade de compreender como duas nádegas pálidas e inertes, viradas para o céu, podem ser capazes de alguma contundência.
terça-feira, 15 de fevereiro de 2011
213 – das biografias, 56
Roland chegou para conhecer o lugar – ou melhor, a “experiência” instalada por Hélio, Tomaso e Vera – no meio da tarde do primeiro dia da coisa. Ficou parado, “experimentando” a visão da moça nua que tentava calçar um sofá capenga com o que, de longe, parecia ser o fichário de um arquivo. Hélio veio recebê-lo: “Que tal, meu caro?”. Roland demorou pouco para responder com outra pergunta: “Trata-se do quê? Um espaço alternativo aos espaços alternativos?”. Hélio também foi rápido: “O que absolutamente não significa que seja um espaço convencional...”. “Não, de forma alguma”, concordou Roland. Nesse instante, sob o olhar dos visitantes, Vera, já encolhida no sofá, roncava.
segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011
212 – das biografias, 55
Vera está irritada: “Você quer que eu fique deitada por três horas neste sofá? É isso? Minha participação se resume em ficar três horas deitada nesta porcaria de sofá, dormindo?”. Tomaso brinca distraído com a marreta, ou finge que não ouve. Hélio, em apuros, explica: “Não não não! Não é só isso. A cada três horas você irá se levantar, virá até este monte de entulho e irá procurar, de maneira totalmente livre, algum elemento que possa servir de calço para o sofá. Está sacando qual é a jogada? Porque você terá um milhão de possibilidades, e poderá testá-las quantas quiser, mas então você desistirá, como se ficasse cansada, pegará esta almofada listrada e irá deitar-se com ela novamente, para dormir. Durante o sono, você se mexe e a almofada cai de novo. E assim vai... Há muito espaço para sua criatividade”. Vera, que aguardava com atenção, responde: “Ok ok ok... Apenas uma coisa, e Tomaso sabe. Eu não consigo dormir de roupa”.
domingo, 13 de fevereiro de 2011
211 – das biografias, 54
“Uma cratera que é três vezes maior que a Terra, e formada por impacto! Pense nisso!”, fala Tomaso. Ele está de um lado do buraco aberto na parede; Vera está do outro: “Sim, isso nos dá o tamanho da nossa pequenez e o desmedido de nossa mesquinharia”. Hélio medita sobre os elementos que darão a forma do entulho: “O que vocês acham de molduras vazadas, cerâmicas, mármores, azulejos, essas coisas?”. Vera suspira, responde que isso seria óbvio; Tomaso concorda, diz que também haveria risco para os visitantes e, como sugestão, elabora com particular desenvoltura uma inversão quase convincente: “Para a ideia que você pretende alcançar, menos óbvio seria, então, o que é próprio do entulho, ou seja, o ser do entulho, o entulho mesmo: entulho feito de entulho”. Hélio abre um largo sorriso e estrala a ponta dos dedos: “Gostei disso!”. Tomaso quer explicar a base dialética do pensamento mas é logo interrompido. “Sim”, completa Hélio, “gostei do risco para os visitantes”.
sábado, 12 de fevereiro de 2011
210 – das biografias, 53
A ideia de Tomaso é chamar a experiência de “Acolhimento”. Hélio quer que a coisa não tenha nome: “Você quer dar um único nome para uma experiência que cada um vai viver do seu jeito? Cada pessoa chame isso do que quiser!”, argumenta ele. Mas o ponto de Tomaso é que tudo parte de um mesmo espaço, e que esse espaço pode ter um nome, sim, servindo ao menos como um dado inicial, que cada sujeito desdobrará do seu modo. “Olha, Tomaso, está vendo aquela coisa ali? Pois então. Normalmente se chama marreta. Agora, eu poderia não ser informado disso, e então tudo seria inédito, e eu a chamaria Jovialidade.”, retruca Hélio. Tomaso pensa um pouco, e pergunta: “E a Vera, Hélio? Que lugar ela vai ocupar nisso tudo? Aliás, podíamos deixá-la sem nome, não?”.
sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011
209 – das biografias, 52
“Um mês após dar à luz, atriz espanhola reaparece sem barriga” – é o que Vera lê no jornal enquanto Hélio e Tomaso ajeitam a instalação. Ela repete a manchete em voz alta. “Mas é óbvio”, responde Hélio, “um volume sai, desocupa o espaço... virar mãe é murchar o barrigão... como se isso fosse muito excepcional!”. Vera quer explicar: “Mas não é este o sentido, Hélio!”. Tomaso dá uma marretada num muro e se mete: “Mas isso também é óbvio, Vera! Não percebe que Hélio está chacotando?!”. Ela se levanta do sofá, joga o jornal no chão: “É chacoteando, seu idiota! E não me venha com esse paternalismo! É claro que eu percebi. Só entrei no jogo do Hélio para mostrar como vocês são idiotas achando que eu sou idiota”. Ela se vira, meio indecisa, por fim escolhe um rumo e vai embora. Hélio e Tomaso acompanham um instante. “Tive uma ideia para este sofá”, diz Tomaso.
quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011
208 – das biografias, 51
Em seu sonho, Georges entra pela porta do mosteiro. É madrugada e faz frio. No pátio, as pedras ancestrais que sustentam as sólidas vigas do templo não podem ser vistas: estão encobertas pela neve e a bruma. Mas há o peso de um tempo muito longo que pode ser sentido. Uma raposa atravessa o caminho quase sem deixar pegadas. Pára e fixa os olhos em Georges. “O que há com sua cabeça?”, pergunta o animal. Neste mesmo momento, um silvo ecoa por todo lugar. Agora não há mais templo, nem qualquer traço de construção humana. Quando volta os olhos para a raposa, Georges encontra em seu lugar uma monja, que se distancia de costas para ele com as mãos postas sobre o peito. Ela tem a coluna curvada e parece caminhar com dificuldade. Mais adiante se vira e levanta o hábito até a cintura, mostrando a Georges o monte cabeludo.
quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011
207 – das biografias, 50
Charles acompanha absorto a nuvem que parte. Não é sua forma o que lembra a jovem bailarina. Também não é o deslocamento de alguma leveza. É outra coisa. Olha do porto a nuvem que parte e vê a jovem bailarina, mas não sabe por quê. Quando jovenzinho, Charles gostava atrair jovenzinhas para trás dos galpões. Elas tinham tanta curiosidade quanto ele, então se deixavam levar com certa facilidade pelos seus sorrisos e olhares fáceis, entregues, encantadores. A jovem bailarina filha do mímico não, nunca. Com sorrisos e olhares fáceis, entregues, encantadores, ela recusava, escapava, sumia, nem nome ela tinha.
terça-feira, 8 de fevereiro de 2011
206 – das biografias, 49
Quando Miguel atingiu a ilha, depois de dias à deriva, sozinho e sem comida, a primeira coisa que viu diante de si foi um mamute. Provavelmente jovem, pois não era dos mais altos, mas sem dúvida já imponente. Com a pele grossa, suas presas salientes e um cérebro irracional, o animal media olhares com uma torre de energia elétrica. Um instante de hesitação passou pelo espírito de Miguel. Só passou. Pois no instante seguinte ele já corria para o lado do mamute, a fim de juntar forças contra aquela ameaça que poderia reduzi-los a cinzas com suas descargas luminosas. Ao lado dos mais fracos, sempre, não importa o tamanho do perigo, o bravo Miguel.
segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011
205 – das biografias, 48
Não foi Hélio quem quis enterrar os sonhos. Mas em função das esquisitas circunstâncias ficou com a culpa. Em vez de construir uma piscina, uma churrasqueira, um tobogã, não, quis o espaço para enterrar os sonhos. É o que alguns dizem ainda hoje, com maldade. Tomaso nunca concordou com isso que ele chama de calúnia: “Isso é uma calúnia!”, diz ele, “Os sonhos caíram por acidente. E Hélio ainda gritou na borda da cova que era preciso recuperá-los antes da chuva”. Ninguém ouve Tomaso a esse respeito. E o caso é que o próprio Hélio tinha feito o pedido pelo telefone: “Telelista, Claudete, em que posso ajudá-lo?”; “Minha querida”, disse Hélio, “eu preciso de alguém que saiba cavar”. Mas depois disso ninguém explicou ao homem da pá o que entrava e o que devia ficar fora do buraco.
domingo, 6 de fevereiro de 2011
204 – das biografias, 47
Tomaso nunca esteve em Veneza. Sabia bem que essas imagens românticas vendidas pelas agências de turismo eram animadas por projeções da nossa mente instável e frequentemente piegas. Se a cidade fosse refletida em suas próprias águas, pensava ele, poucos canais seriam tão charmosos, e pouco poderíamos suspirar sobre as gôndolas nos momentos entre as trocas da maré, quando a água fica parada e sobe no ar aquele denso cheiro de fedor. Para Tomaso, Veneza era a materialidade plenamente comunicante que devia em tudo sobrepor-se ao psiquismo daqueles que sonham à distância. Por isso pensava para as próximas férias um roteiro fora do roteiro, algum lugar preservado da imaginação mediana, como as florestas tropicais ou uma pequena ilha perdida no meio do oceano.
sábado, 5 de fevereiro de 2011
203 – das biografias, 46
Dia ou noite, Murilo desprendia-se com facilidade por lá e gostava mesmo de sempre voltar. Afinal, fora em Veneza que se conheceram. Mas não podia esconder certo peso nas horas em que era surpreendido por Vera gritando ao seu lado, como que para não morrer na noite, enquanto ele, ao contrário, flutuava com gosto em seus sonhos. De fato, aliás, para Murilo a relação com Veneza se dava por contraponto, como uma espécie de vista aérea e panorâmica: via-se com frequência voando sobre os canais da cidade, que macios se desenrolavam como serpentinas coloridas e tinham nas margens corpos de mulatas alternados com bustos de Cristo; e quanto mais alto voava, mais leve se sentia, até que Veneza desaparecia de todo, atendendo então pelo nome de “La Puta” ao som do excitante bater das castanholas.
sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011
202 – das biografias, 45
E se nem sempre Vera recebia com felicidade o período noturno, ela não gostava, peremptoriamente, das noites em Veneza. Não conseguia dormir à noite em Veneza: tinha sonhos horríveis em que se perdia entre os canais submersos, sem saber se as bolhas de ar que soltava, já sem fôlego, subiam à superfície ou a levavam mais para o fundo, onde sempre aparecia um mímico de gondoleiro gesticulando que ela precisava de um guarda-chuva, e ele ria em silêncio, e batia no próprio traseiro que retumbava como se fosse um tambor, até que ela acordava realmente ensopada, suando frio e gritando em uma variante da língua banta que seus avós eram livres e gostavam de macarrão chinês.
quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011
201 – das biografias, 44
Nem sempre o mês de janeiro passava tão rápido na vida de Tomaso. Quando percorreu de trem os limites entre a Europa e a Ásia, acompanhado de Paul (que temeu durante todo o percurso ser vítima de um desastre ferroviário), o cinematismo proporcionado pelo veículo e a excitação da viagem fizeram os dias mais curtos e ligeiros. Mas outra foi a experiência do tempo quando, dois anos depois, resolveu subir até o cume do Lawaròi. Nessa ocasião os dias se arrastaram, e isso exatamente por um efeito da luz, sempre presente em alguma intensidade, o que fazia a noite ser insuficiente e breve, como cada movimento respiratório na altitude elevada. É quase desnecessário dizer que essa condição extrema trouxe também um extremo desconforto, algo como a sensação incomunicável, talvez, de um tempo fora do tempo, como a sensação que sentiu uma outra vez, ainda, quase ao nível do mar: a respiração breve e insuficiente no momento em que viu Roland ser atropelado por um caminhão; o momento que não passa.
quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011
200 – das biografias, 43
Muitas vezes, Tomaso era carrasco de si mesmo. Por isso era mais parecido com Roberto do que com Roger, embora afetivamente fosse mais próximo deste. Ao confrontar um cliente difícil, ou irremediavelmente insatisfeito, como costumava dizer, Roberto recusava-se a aceitar, contudo, que o problema era do próprio cliente (talvez algo não resolvido ou não sabido, por exemplo, que merecesse o tratamento de uma análise, de uma surra ou de uma aula de dança de salão); ao contrário, Roberto sempre se colocava no centro do problema, como causa e, portanto, solução possível, e assim trabalhava horas e dias seguidos até a exaustão de sua saúde, ou até o tal cliente mostrar-se vencido por um slogan que aparentemente resolvia a vida. E assim também era Tomaso: diante de uma parede – de uma diferença – encontrava-se com frequência diante de si mesmo, como se à beira de um abismo; e parece que a única saída, para ele, consciente ou inconscientemente, era resolver isso com um passo à frente.
terça-feira, 1 de fevereiro de 2011
199 – das biografias, 42
Deitada na beira do penhasco, com a barriga colada à rocha, Margot esticou-se para ver lá embaixo. Seus olhos projetaram a queda em sua imaginação, e imediatamente seus músculos se contraíram em todo corpo, e ela apertou firme a mão de Tomaso, que estava ao seu lado. “Subir é sempre mais fácil”, disse Margot. “Na verdade, tudo depende de como é a descida”, respondeu Tomaso. Ela riu. Sem dúvida ela queria descer, e não cair. Alguém pode estar a poucos metros do chão, e então torcer o pescoço. Mesmo um pequeno degrau pode ser fatal, embora não dê nenhum frio na barriga se você decidir olhar para baixo. “Está bem, senhor sabichão, vamos lá”. Antes que Margot se levantasse, Tomaso puxou um fio de cabelo que estava preso na alça da sua mochila. “Olhe só”, disse ele esticando o braço no vazio, “nós somos tão pesados quanto este seu fio de cabelo”. No amanhecer sem vento, Margot viu um pequeno corpo sumir ao lado do imenso paredão de pedra. Esta foi a última descida de Tomaso.