terça-feira, 30 de novembro de 2010

136 – das biografias, 17


No meio de uma roda de polemistas, ele defende o amigo ausente: “O fato é que a dificuldade que Edouard encontra para firmar a mão é de certa maneira comovente. Não é patologia, não é corpo; é paixão, meus caros, pura alma! Nesses gestos tensos de sua mão vemos todo o sentimento que o inflama. E talvez por isso ele realize tão bem isso que os senhores chamam de manchas obscenas, esses arroubos de verdadeira arte, em vez de caprichar delicadamente as linhas e as formas, como tantos outros, jovens-velhos cansados desde sempre, convencionalíssimos, insistem em fazer”.

A porta do café se abre com violência, o vidro se quebra. “Tomaso, seu filho da puta, cadê meus comprimidos?” Edouard pula no pescoço do amigo. Enquanto o soca, vai falando: “Você quer me ver tremendo, é?... Quer que eu trema até morrer!... Pois veja que beleza... Tremendo... a única coisa que eu consigo fazer... é surrar você...”


segunda-feira, 29 de novembro de 2010

135 – das condições de leitura, 6


Sobre a mesa de madeira no meio da sala, uma folha em branco, um lápis e uma borracha. Um homem – guia, vigia; amigo, traidor – repete para você, apenas e precisamente, as palavras:

“Você só tem uma chance. Demonstre como ser-bicho”.


domingo, 28 de novembro de 2010

134 – das biografias, 16


Uma agulha de forma curva penetra primeiro um lado da larga ferida aberta, depois o outro, por onde sai, atravessando a linha que garante a sutura. São necessários muitos pontos. O paciente, acordado, não grita, não se debate: parece calmo enquanto terminam o procedimento que coloca no lugar a parte da tíbia que estava para fora do seu corpo. Os dedos do pé, contudo, continuam pretos e somente com alguma sorte não precisarão ser amputados. Élie entra na sala de operações, cumprimenta a equipe, o cirurgião e coloca a mão no ombro do paciente:

“Tomaso, essa foi por pouco. Mas ainda temos que ver o que será do seu pé.”

“Não se preocupe, meu caro. Eu não sinto nada. E agora me diga: o que veio primeiro, afinal, a religião ou a arte?”


sábado, 27 de novembro de 2010

133 – das biografias, 15


“Mas Hélio, e se disserem que você vive metendo o nariz onde não deve?”

“Ah! Porque eu rodo a baiana? Porque eu subo o morro pra descer com ele? Porque eu vivo a roda-viva do nosso tempo? Porque é a vida, sim, que me chama. Qual é!”

“Não, não era bem isso... Foi uma piada infame, deixa pra lá.”


sexta-feira, 26 de novembro de 2010

132 – das biografias, 14


A discussão com a esposa, logo pela manhã, ainda incomoda. “Mas que diabo de mulher!” Ele aperta o volante, se irrita com a música, mexe no rádio, uma outra estação, La vie en rose. A caminho de uma última entrega. Acende o cigarro, meio cantando, ouve o grito que chega tarde.

“Roland!”

O caminhão sente um impacto. Ele sente um impacto, e para.

Tomaso corre até o meio da rua chamando por Deus.


terça-feira, 23 de novembro de 2010

129 – das biografias, 13


“Eu vejo tantas janelas... E pensar que em cada uma delas escorre uma vida, ao menos, e sua imensa solidão, com suas mesquinharias, sofrimentos, sujeições de toda espécie e, é claro, algumas pequeninas alegrias que trazem a sensação de certa liberdade, mas que de fato mascaram a bruta, a pesada matéria da realidade, isso que nos arrasta bem ao rés do chão. E são muitas, muitas janelas, não? Em prédios sem fim, cidades que terminam em novas cidades, ainda mais vastas, devastadoras. E quando chega a noite todas essas janelas se iluminam, como se gritassem com um brilho silencioso, na direção do escuro, o incontornável da existência e...”

“Certo, Jean, já entendi. Temos que ser pragmáticos nessas horas. E a solução, eu lhe digo, é uma verdadeira revolução nas concepções urbanísticas: janelas imperceptíveis, totalmente integradas , ou melhor, totalmente camufladas na própria fachada dos prédios. Abertas ou fechadas, de manhã ou à noite, é como se não existissem! Está vendo? Design top de linha. Que tal?”


segunda-feira, 22 de novembro de 2010

128 – das biografias, 12


“Ali, Georges, está vendo? Paradinha na árvore, naquele galho mais fino.”

“Isso não dura, Tomaso...”

“Como não dura?!”

“A não ser que você esteja pensando em matá-la.”

[...]

“Você não está pensando nisso, não é mesmo?”

[bate um vento mais forte que talvez a tenha salvado]


domingo, 21 de novembro de 2010

127 – das biografias, 11


“Duas figuras centrais na tese, são elas capazes de nada, nada mesmo. E são elas absolutamente diferentes, ou ainda igualmente diferentes: polares. Então tudo se articula em torno disso. Duas figuras extremamente originais, centrais, tanto uma quanto outra, capazes de nada e assim tragando tudo ao redor, em suas diferenças.”

Tomaso fecha o livro e observa Herman, do outro lado da rua, acenando. Deveria levantar-se, pagar o café e atravessar o asfalto para encontrá-lo. Olha para baixo, vê que colado à sola do seu sapato, na calçada, está um recorte de jornal: “Escritório de Advocacia contrata:”.


sexta-feira, 19 de novembro de 2010

125 – das passagens, 8


Quando escreve... , até o fim e chega. Mas logo alguma coisa acontece e o limite se ri, parece que lá de fora, e bem alto, mas não: ei – ouve-se baixinho, estranho, bem aqui.


quinta-feira, 18 de novembro de 2010

124 – das condições de leitura, 5


Um cubo revestido por completo de veludo negro sustenta uma forma harmoniosa de mármore polido. Um cubo oco de vidro temperado. Asfalto sustenta esse cubo. Asfalto onde há um canino de primata incrustado na superfície. E um denso tapete – de um verde-grama dos mais vivos – cobre de ponta a ponta esse asfalto.


quarta-feira, 17 de novembro de 2010

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

121 – das condições de leitura, 4


Cinco jacarés de avental colocados em volta de dois berços com ovos vermelhos e vermelhos com listras brancas. Os ovos parecem ser de uma proporção incomum: são maiores que as bocas dos répteis. De uma armação no teto pende um mosquiteiro de tule que envolve apenas os berços, não os jacarés. No canto, uma inscrição: “Plano de Segurança Pública”.


quinta-feira, 11 de novembro de 2010

117 – das novidades, 8


Susto: força que se caracteriza e manifesta pelo estado de ameaça, capaz de causar estranhamento ou desencontro momentâneo entre os movimentos do corpo e do espírito. Decorrência imediata que deve ser frisada: se tal força passar da potência ao ato já não mais poderá ser considerada uma ameaça, e sim deverá ser medida pelos efeitos manifestados por sua ação. Em outras palavras: susto é uma manifestação da não-manifestação. Tal condicionamento paradoxal pode ser facilmente visualizado na seguinte situação, como hipótese absolutamente palpável: um sujeito que acorda no meio da noite, vai ao banheiro e se depara com outro alguém que tão logo se apresenta como um maníaco psicopata, em surto, com uma máscara de filmes de terror “B”, uma cabeça de manequim ensanguentada com ketchup numa mão e uma foice na outra, rumando em sua direção com pés arrastados (mas velozes) e grunhindo ferozmente. Pois bem, se a aparição dessa figura for apenas uma brincadeira de um irmão, ou um primo, ou um amigo insone, o sujeito terá certamente vivido um susto, e este assim poderá ser definido, com toda propriedade, já que a vida do sujeito em nenhum momento foi concretamente comprometida por aquela obscenidade. Agora, se o maníaco for mesmo um maníaco (e a cabeça for mesmo de uma pessoa morta, e o ketchup for sangue de verdade, e por mais estereotipado que seja esse seu surto de ação maníaca: uma máscara, uma cabeça decepada, uma foice... convenhamos!), se o maníaco for mesmo um maníaco podemos supor que o sujeito que imaginamos primeiro deverá ter a sua vida não apenas ameaçada, mas com grande probabilidade ele a perderá, isto é, ele morrerá mesmo, assassinado sem piedade pelo psicopata descontrolado. Em suma, neste caso a potência (da ameaça) passará plenamente ao ato (a execução), que depois de consumado não deixará mais risco e tampouco possibilidade de susto para aquele sujeito que restará sem vida, no chão gelado, a caminho do banheiro. Alguém poderá afirmar que houve, entretanto, um susto no entre-lugar, isto é, no ponto em que o psicopata ainda não havia se revelado como tal, somente grunhia e agia como um. A esse alguém eu responderia o seguinte: defendo a concepção (talvez a da maioria dos colegas) de que nessas condições os últimos instantes nem poderão ser definidos ou atravessados pelo susto, não poderíamos assim chamá-lo, porque isto, com efeito, já seria outra coisa, talvez indizível, mas que podemos sugerir fosse um pressentimento da morte limítrofe, como se corpo e espírito não se estranhassem ou desencontrassem em função da ameaça, mas reagissem, em conjunto, em fuga ou combate, à morte iminente: assim, não seria um susto, mas uma antecipação da agonia, uma agonia (um gozo?) precoce. Em suma: para que haja susto é preciso uma indeterminação que faça corpo e espírito discordarem quanto à reação necessária para uma situação específica e, mais que isso, é preciso que tal indeterminação apenas ameace a integridade do sujeito, mas não a comprometa de fato, para que haja um tempo – posterior, simultâneo – em que as coisas ficam, digamos, sem chão. E isso, claro, excetuados os casos das pessoas que morrem não do ato resultante de uma potência mas da suspeita que não se confirma, ou seja, da própria ameaça. Esses são os casos das pessoas que morrem de susto, literalmente, e devem ser analisados à parte, já que nestes casos as pessoas morrem na hora errada, creio que sem agonia (nem gozo), muitas vezes antes do tempo.


sábado, 6 de novembro de 2010

112 – da topografia do tempo, 2


Na cozinha tem uma mariposa que vai sobrevivendo sem muito esforço, levada pelas térmicas que sobem da panela de arroz. As porções serão levemente empapadas, com cebolinha bem picada. É mãe a menina que costura ao lado, na máquina arcaica, pesada de tanto ferro fundido e memória. Essa menina aí, dentes com pouco cálcio e bicos dos seios rachados. O range-range termina de furar a pele do vestido que será velho, de qualquer maneira. Um estranho entra por aquela porta lateral e se dirige, mudo, para o meio. Traz um martelo e ouve um sino de bronze lá fora. Alcança um pote de vidro empoeirado, tenta desenroscar a tampa. A mariposa voa até a boca do pote, pousa e desaparece. No quarto, vento é um tufo de poeira e cabelo.


quinta-feira, 4 de novembro de 2010

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

terça-feira, 2 de novembro de 2010

108 – das novidades, 7


– Como você entende essa sua reação diante da melhora?

– Bem, eu não senti raiva, na verdade até fiquei feliz por ela.

– Isso é interessante. Mas vamos voltar ao começo. Como foi o início da relação de vocês?

– Eu costumava pedir créditos consignados para cobrir seus caprichos. Meias e outras roupas íntimas de segunda mão. Acreditava que essa condição não era patológica. Até o dia em que ela foi ameaçada por ficar devendo no mercado negro de peças suadas. Eles são impiedosos.

– Entendo. E como foi a seguir?

– A coisa só piorou. Paguei a dívida. Mas ela fugia de casa, passava dias sem dar notícias. Às vezes a encontrávamos em abrigos para mendigos, quase em coma de tanto cheirar meias e outras peças íntimas já mofadas, cheias de fungos nocivos.

– Mas, enfim, a internação foi positiva, mesmo à força.

– Claro, sem dúvida. Hoje damos a ela uma fatia de gorgonzola por semana. E isso basta para acalmá-la. Ela consegue levar uma vida quase normal.


segunda-feira, 1 de novembro de 2010

107 – das biografias, 10


No final da tarde de domingo, Michel se lembra de bons momentos vividos com amigos argelinos, sempre muito animados, na periferia de Paris. Coloca-se de pé num ímpeto e decide rumar para o mercado mais próximo, precisa de uma cerveja bem gelada. E patê de alcaparras. No corredor de massas e molhos, distrai-se com a voz que anuncia a última promoção-relâmpago e topa de frente com um funcionário que – avalia depois – tem a pele bem bronzeada e largo nariz. O rapaz se desculpa. Em sua camiseta a pergunta: “Como posso ser útil?”.