segunda-feira, 30 de maio de 2011

316 - das passagens, 21


Era russo o ornitólogo que à mesa discorria sobre a sua concepção de vida a partir do que ele entendia ser a especificidade do voo dos beija-flores. Era uma espécie de metáfora de difícil articulação, obscura em alguns pontos do raciocínio, por mais que o ornitólogo e a sua tradutora se empenhassem em precisar como se dava tal deslocamento: sim, insistia o especialista russo, o voo dos beija-flores é a perfeita imagem da nossa vã existência. Os presentes no jantar, devido mais ao empenho da tradutora do que ao brilhantismo da filosofia em questão, puderam compreender que se tratava de algo relacionado à velocidade das asas e do batimento do coração das pequenas aves, e que essa velocidade podia ser decomposta por um artifício cinemático, o que por sua vez ativava um artifício do pensamento também ligado ao entendimento do tempo e suas potencialidades, para além da linearidade cronológica. Na ponta oposta da mesa, ele acompanhava tudo com uma atenção ávida, mas deslocada: não fazia questão de desvendar o que queria dizer o discurso extravagante do ornitólogo, e nem mesmo acompanhava as palavras quase sem sotaque que a tradutora russa pronunciava com delicadeza e que deviam ter lá o seu sentido; na outra ponta da mesa, olhando para ela, os batimentos do coração numa velocidade incomum, ele estava diante daquilo que artifício algum seria capaz de traduzir: dois olhos verdes e cabelos vermelhos como a vida.


domingo, 29 de maio de 2011

315 - das passagens, 20


Em Lobitos a água é gelada, o mar avança sobre uma bancada de areia e pedras. Na maré baixa, a profundidade limita-se a poucos centímetros e algumas rochas ficam expostas. Há um deserto com algumas colinas, onde antigas bombas de extração de petróleo, hoje enferrujadas e obsoletas, se assemelham aos restos de algum grande desastre, como se ali, em tempos imemoriais, tivessem caído os fragmentos de uma imensa maquinaria celeste, após seu colapso. Casas de um povoado fantasma aguardam com suas portas e janelas abertas. Frequentemente o vento as visita, sobretudo no final da tarde, com a luz do sol atravessada pelas frinchas das paredes. Nesses momentos, através dessas faixas de luz, podemos ver uma infinidade de partículas leves, suspensas no ar. Se desatentos, poderíamos facilmente confundir a maioria delas com partículas de poeira ou com os minúsculos grãos de areia que, desgastados por milênios de insignificante viagem, então se desprendem do chão com o sopro que vem do sul. Mas a verdade é que essas partículas são radicalmente estranhas, como se sua única propriedade positiva se manifestasse pela impossibilidade de haver um nome próprio para elas. Seria mais fácil a tarefa de dizer infinitamente o que elas não são. Porque mesmo esse nome, “partículas”, não lhes serve em nada, já que suas formas e dimensões variam tanto que poderíamos desacreditar que algumas delas, bem grandes, flutuam; e muitas outras, com exóticas protuberâncias e reentrâncias absconsas, alentariam quem defendesse, por exemplo, a sua não-unidade, sugerindo uma formação a partir de espécies coloniais em trânsito: como se fossem corais feitos de colônias de corais, partículas feitas de partículas, de outras partes. Assim, o que vemos nessas faixas de luz são coisas diversas, coisas sem nome, coisas resistentes, coisas. Pois na melhor das hipóteses são isso mesmo: coisas que são, ou ainda, coisas que não.


sábado, 28 de maio de 2011

314- das condições de leitura, 21


No meio da festa, ela trazia o rosto iluminado com brilhos, num contorno de tintas e purpurinas semelhante a asas de mariposa, e onde seus olhos escuros ocupavam o mesmo lugar dos olhos que muitas vezes as asas das mariposas mimetizam numa tentativa de defesa ativa, ou de ataque passivo. Ele, por sua vez, de cara limpa, mas turvado com boas doses de cachaça, seguiu da ponta do seu nariz até o queixo fino e alongado que ela tinha, enfim concentrando-se no brilho da pele branca e suada que realçava o volume dos seus seios, sobretudo quando ela pulava no ritmo daquela música terrível que então estava na moda. Ela, cheia de animação e cor, não o viu. Ele, por uma relutância muito pessoal em relação a festas, não se aproximou. E o que ficou para ele foram anos de produção assombrada em que retratava, sempre, uma mulher nua e de seios fartos que se metamorfoseava em borboleta, em diferentes posições, e por todos os lugares, até ocupar inteiramente o aposento onde ele vivia confinado, do chão às paredes e o teto, no final totalmente coberto com a imagem daqueles olhos sedutores, fatais.


sexta-feira, 27 de maio de 2011

313 - das passagens, 19


Não há, querida, ninguém como você. Ninguém, querida. Como nós, agora, diante do teto, afundados nos anos almofadados, com um pouco de sono, nudez e o calor, não há. Só no estrangeiro, quem sabe. Em outro lugar, bem longe, dizem que na Rússia, talvez. Lá, pode ser, há alguém assim, querida. Como você, como nós, agora mesmo, diante do teto e alguns lampejos, horizontalizados, há muitos anos, lá na Rússia. Sim, querida, lá é possível. Porque não há ninguém, ninguém como você. Ninguém, querida. Não há ninguém.


quinta-feira, 26 de maio de 2011

312 - das condições de leitura, 20


Não gosta de brigadeiro. Ou melhor, detesta. Principalmente o granulado do brigadeiro. Se for então aquele granulado colorido... Para ele, nem se for para enfeite. E a verdade é que essa ojeriza passa mesmo pela língua, quer dizer, não exatamente pelo órgão do paladar, mas sim pela inorganicidade da palavra que deve ser articulada: é que ele tem dificuldade de falar “granulado” e acha absolutamente impossível dizer com naturalidade “granulado colorido”. Aquela brincadeira dos três tigres tristes é fichinha perto disso. O peito do pé do Pedro é preto também nem chega perto. Granulado colorido, para ele, é o exato nome do indizível. De todas, é a forma mais traiçoeira que o mundo encontrou para enredá-lo e deixá-lo à mercê de uma vivência doce e colorida, de um prazer que se desmancha na boca, irradia no corpo e alenta a alma, mas que jamais, diga ele o que for, jamais poderá ser possuído.


quarta-feira, 25 de maio de 2011

311 - das condições de leitura, 19


Ao fundo, o Morro da Cabrita, em Santana de Cuparaquem. Ele se mostra imponente: um platô de altitude acentuada que termina, na margem leste, num acidente abrupto, caracterizado por uma parede vertical de rocha exposta, com poucas saliências, de cerca de 1.800 metros de altura. Há séculos, era uma espécie de refúgio para as tribos autóctones, território que servia para seus ritos de passagem: ali celebravam a vida e a morte, o amor e a guerra. Mas isso é passado distante. Nos anos 60 e 70 do século XX, o lugar já era buscado apenas por grupos de jovens urbanos, todos sem rumo, que elegiam o inóspito e inacessível como espaço propício para o consumo das drogas e do amor à mão. Nas últimas décadas, no entanto, observou-se que houve maior controle e discernimento: vários especialistas passaram a frequentar o local; entre eles: alpinistas, geólogos, ecologistas, naturalistas, topógrafos, meteorologistas, ufólogos, maconheiros, curandeiros, sexólogos, terapeutas, biólogos, empresários, trilheiros, arquitetos, esotéricos, políticos, artistas, exilados, fugitivos, criminosos e antropólogos (estes últimos por causa das tribos de criminosos, maconheiros, ufólogos, curandeiros, naturalistas, sexólogos, esotéricos, alpinistas etc. etc.). De modo que, podemos dizer, o lugar mudou de platô a plano; ou, para usar um tipo de construção muito recorrente entre os jornalistas mais espertos (especialistas também presentes no local), o Morro da Cabrita, em Santana de Cuparaquem, já não salta livre por aí: virou animal doméstico.


terça-feira, 24 de maio de 2011

310 - das passagens, 18


Conta que há muito tempo, numa pequena aldeia no Japão, viveu um homem que tinha um nariz enorme, tão grande que valia por dois, ou mesmo três, o que exigia cuidados especiais de limpeza e limitava a liberdade das refeições (principalmente no caso das sopas e chás). Esse homem escreveu um bocado, contos, poemas, tratados e pensamentos dispersos, mas tudo se perdeu. Ficou apenas a sua biografia, escrita décadas e décadas depois por um mexicano que não tinha um dos braços, usava um gancho de aço para supri-lo e acreditava em viagens no tempo e na transmutação dos corpos. Conta também que ambos, japonês e mexicano, têm até hoje a fama de grandes mentirosos, embora – ela ressalta – a fama do japonês tenha sido construída, é claro, pela biografia do mexicano. Conta que o intrigante da situação é que não se sabe afinal qual fama é justificada, pois se o japonês era mentiroso então o mexicano falava a verdade, e se o mexicano mentia então o japonês não era mentiroso. Conta finalmente que, quando conta a respeito disso tudo, sempre questionam a existência de figuras tão singulares. Aí ela se ofende: é como se fosse ela a mentirosa.


segunda-feira, 23 de maio de 2011

309 - das visões de mundo, 12


Precisa respirar com alguma frequência. Para isso fica em silêncio, às vezes por dias seguidos. Respirar mantém seus pés no chão. Sente falta de tempos vividos, mas que ninguém confirmaria, nem ele mesmo, porque devem ser imaginados. Sente saudade de vontades que passaram, de conversas que não teve, lugares que não conheceu, ousadias que conciliou. O breve momento da despedida fica: é a maior proximidade possível. Em seus sonhos algo sempre se rompe ou parte. Fica chateado, sempre, porque dá grande importância aos sonhos (acha que neles algo se realiza). Mas ao acordar, de pouco mais que nada se lembra: um rio ou um furacão podem dar no mesmo. De algum modo isso tudo parece ser divertido: ele sorri.


domingo, 22 de maio de 2011

308 - das visões de mundo, 11


As pessoas interrogavam quando seria. E perguntavam principalmente pelo primeiro que soube de tudo; como se precisassem de uma resposta pura, ou ao menos da figura que tinha as palavras exatas. Mas todos se respondiam basicamente com a mesma informação, e passavam essa certeza de um a outro, falando baixo que ele, o primeiro que soube, estranhamente era como qualquer um, só que tinha cabelos grandes e crespos, com ar de desleixo. Havia aglomeração, empurra-empurra, uma ansiedade contagiante. Alguns vinham com cães ferozes, e assim abriam algum espaço. Outros tentavam o suborno, mas logo desistiam, pois ninguém sabia ao certo a quem recorrer ou se havia ali algo próximo a uma hierarquia vigente. Era como se ninguém avançasse ou como se o tempo mesmo tivesse parado. Como se todos estivessem nus, e além de nus, carecas: não havia ninguém ali com um cabelo grande e desgrenhado o suficiente para ser confiável, para ser ouvido. Mesmo assim ninguém desistia. Cutucavam-se, apontavam – Será aquele? Não, impossível. Concordavam. Vista do alto, a cena poderia ter o aspecto de um formigueiro caótico sem a formiga-rainha, ou o de um show de rock pesado, mas sem a música, sem o palco e a banda, e quase em câmera lenta. Na verdade, curiosamente, o que predominava era um grande silêncio: como se bem ali habitasse o vazio.


sexta-feira, 20 de maio de 2011

306 - das passagens, 17


Tem sempre alguém partindo nessas histórias. Não sei nem para que repeti-las. Ela acena da janela. Despede-se, sem forças, mas é ela quem fica. Ali parada, o caminho é longo. Pelo menos é o que dizem nessas histórias: porque é sempre mais difícil para quem espera. Ao contrário, para ele o caminho é mais fácil: para baixo, todo santo ajuda; assim ele segue resoluto, e vai longe. Depois que o perde de vista, ela vai até o quarto. Remexe o fundo do armário, acha o lenço rendado. Amassada no canto, lá mais no fundo ainda, também encontra aquela blusinha leve e decotada, colorida, de muitos anos. Aí já sabemos que, entre uma coisa e outra, ela secará os olhos, assoará o nariz e, à tarde, resolverá fazer a depilação completa que ele sempre quis.


quinta-feira, 5 de maio de 2011

291 - das passagens, 16



Estávamos em nossa cidade. Eu sabia disso, que era a nossa cidade, embora os prédios, e tudo o mais, fossem irreconhecíveis. Você estava alguns metros à frente, sentada num banco ao ar livre, de costas para mim. Pessoas passavam por este espaço entre nós, interrompendo por instantes a visão que eu tinha de você. E foi entre um instante e outro, em meio aos passantes, que eu vi: você se virou para o lado e beijou alguém. Era um homem ruivo. Eu me levantei, caminhei na direção de vocês e, sem me deter, peguei minha mochila, que estava do seu outro lado, no mesmo banco. E segui em frente, lembro-me, sem olhar para trás. Não sei se você me viu, se me chamou, ou se nada disso.