Era russo o ornitólogo que à mesa discorria sobre a sua concepção de vida a partir do que ele entendia ser a especificidade do voo dos beija-flores. Era uma espécie de metáfora de difícil articulação, obscura em alguns pontos do raciocínio, por mais que o ornitólogo e a sua tradutora se empenhassem em precisar como se dava tal deslocamento: sim, insistia o especialista russo, o voo dos beija-flores é a perfeita imagem da nossa vã existência. Os presentes no jantar, devido mais ao empenho da tradutora do que ao brilhantismo da filosofia em questão, puderam compreender que se tratava de algo relacionado à velocidade das asas e do batimento do coração das pequenas aves, e que essa velocidade podia ser decomposta por um artifício cinemático, o que por sua vez ativava um artifício do pensamento também ligado ao entendimento do tempo e suas potencialidades, para além da linearidade cronológica. Na ponta oposta da mesa, ele acompanhava tudo com uma atenção ávida, mas deslocada: não fazia questão de desvendar o que queria dizer o discurso extravagante do ornitólogo, e nem mesmo acompanhava as palavras quase sem sotaque que a tradutora russa pronunciava com delicadeza e que deviam ter lá o seu sentido; na outra ponta da mesa, olhando para ela, os batimentos do coração numa velocidade incomum, ele estava diante daquilo que artifício algum seria capaz de traduzir: dois olhos verdes e cabelos vermelhos como a vida.
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