sexta-feira, 29 de julho de 2011

376 - do despertar para a imagem, 7



Havia dito para sua analista: “parece que se eu deixar meus impulsos correrem soltos... tenho receio de onde a coisa vai parar”. A analista deitou e rolou com isso. Depois, na semana seguinte, ele cruzou as pernas e, com os olhos vagos, começou bem assim: “eu não sei mais onde enfiar o meu desejo”. E a analista encerrou a sessão ali mesmo.

quarta-feira, 27 de julho de 2011

374 - do despertar para a imagem, 6



Ela se deita nua por questões de segurança. É que se mexe muito durante a noite, e se usar qualquer roupa, ela vai se enroscar no lençol, no cobertor, no travesseiro. Até o próprio cabelo atrapalha e pode ser um risco. Uma vez ficou sem ar porque conseguiu fazer com que a camiseta que usava (mesmo bem justa, colada ao corpo, já para evitar desconforto) subisse pelo seu tronco e se enrolasse em seu pescoço. Só sobreviveu porque, sonhando que se afogava, e se debatendo, chutou a canela do marido, que acordou. Quer dizer, para ela, durante a noite, de tecido basta a pele. E por isso seu corpo fica sempre entregue, exposto, relaxado – sem vergonha. O que afinal garante suas ótimas noites de descanso: o marido não percebe e ela não sabe, mas esse coque démodé, de muitos e muitos anos, acaba esfriando as coisas.

terça-feira, 26 de julho de 2011

373 - do despertar para a imagem, 5



Havia salgadinhos e docinhos. Havia bolo. Balões e música. E muita bebida, o que explica que uma brincadeira tão sem sentido tenha gerado tanta animação. Tratava-se de fazer um buraco num prato de salgadinhos e por ele enfiar a cabeça de alguém, de modo que o prato se acomodasse em volta do pescoço como uma larga coleira. Depois, essa pessoa passava engatinhando por entre as pernas dos outros, que ficavam em fila. No final, o próximo era escolhido para usar o prato, e assim seguia. Só isso. Mas tudo era muito divertido. Tinha muita risada, muito contato, muita bebida. É só prestar atenção em seus olhos: difícil dizer quanto mais ele aguenta. E descabelado, coitado, já quase engolindo o próprio bigode. Sem saber, ainda, ele engatinha em direção ao pior: logo adiante um homem gordo brincará de sentar-se sobre suas costas.

segunda-feira, 25 de julho de 2011

372 - do despertar para a imagem, 4



Essa dor de dente e a peruca que escorrega sobre a nuca não serão suficientes para desanimá-lo. Sobre o peito, pendido do pescoço, o amuleto que o lembra do destino: não por ser estrela brilhante, e sim por ser corpo cadente, pequenino. Daí que seus olhos quentes mirem o desafio, o abismo, a distância, o horizonte – e sem uma desconfiança sequer ele então avança. Mas espere! Ali, sobre sua testa, em meio às plumas, a duras penas, sim, é possível ver um orifício escuro: e eis que, diante da ameaça, o íntimo de uma vida involuntária prepara o acidente.

sábado, 23 de julho de 2011

370 - dos estados de ânimo, 19




“Artur,
Me desculpe. De bêbado saí ontem sem pagar a conta. Como vocês fizeram? Dividiram tudo? Quem pagou minha parte? Deus, a ressaca e a culpa estão me matando... Me diga como faço para acertar isso com vocês.
Abraços,
_ _ _ _ _”




quarta-feira, 20 de julho de 2011

367 - das passagens, 27



“O bom das baratas é que elas explodem.”
“Sim, como olhos.”
“É... Mas é diferente.”
“Diferente como? Por causa das perninhas?”
“Não... Questão de gosto, só isso.”

sábado, 16 de julho de 2011

363 - das passagens, 26



(Quer um sopro que retenha
aqueles cabelos furiosos.)

“Ela...”

(Desiste já no primeiro obstáculo.)


sexta-feira, 15 de julho de 2011

362 - das passagens, 25



Crê que tem sonhado com ela, mas não sabe. Quando acorda tem as mãos suadas. Uma hora dessas, quando abrir o guarda-roupa, ficará surpreso de não encontrar lá dentro, pendurada num cabide de plástico, torcida, uma flor de papel encarnada. E tampouco encontrará ali uma estrela, que elas são raras, e nem o vácuo, sabe que isso é coisa complicadíssima. E ficará surpreso. Pode esperar de tudo durante a tarde, qualquer coisa. Há muito tempo, num canto da sala, entre as toalhas de banho, nos álbuns de fotos, nos recados colados na geladeira, entre as correspondências (tantas contas), no lixo do banheiro, no espelho, se fabrica o imprevisto. Mas é só no fim do dia que arrisca abrir os olhos, e pergunta em voz sumida o que mais falta acontecer.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

354 - das biografias, 66



Roland poda uma jovem cerejeira. Quebra o silêncio quando vê o bambuzal adiante: “Contemple o bambu. Qualquer bambu, aquele ali. Ele é firme e ao mesmo tempo flexível; longo, mas também compacto; tão denso em suas fibras como oco em seu centro. Veja: é resistente às intempéries não porque luta contra elas, mas porque a seu modo as aceita”. Parece que Roland está a dizer, em outras palavras, que o bambu é um ser de essência dialética: sem sair de si mesmo, movimenta-se entre uma coisa e outra. E por isso ele pode ser tudo, menos radical: “Bambu ortodoxo é poste”, diz Roland com bom humor, enquanto varre as folhas do pátio. Se pensarmos bem, ele pode estar certo. Afinal, bambu não é algo que fica plantado ali, imóvel, como estátua pintada de verde. Na mesma medida em que acata o mundo, ele responde, ainda que sutilmente: vibra, assobia, enverga, estala. Deve ser isso que Roland quer dizer agora, descascando uma cebola: “Sua contundência é mínima e leve, fatal como um golpe ancestral que tivéssemos esquecido”. Sim, deve ser isso... As palavras – assim como o bambu – nunca são óbvias. “Tente entender sua força: a eficácia está em não ser eficiente”. Como as outras, essa frase fica no ar, dando voltas. Roland pára, enxuga os olhos num lenço, repara no vento. “Mas, para compreender sinceramente, é preciso parar de questionar a essência do bambu. Qualquer criança sabe disso. Pergunte a elas. ‘Bambu é uma planta que voa’, elas dirão. Ou então: ‘Ele é um grande nadador’. Pois acredite: não há nada mais verdadeiro.”


quarta-feira, 6 de julho de 2011

353 - das visões de mundo, 19


Perfeição do ovo: elipse, enigma.
Claro, é forma ovalada, de elegante esgrima
de curvas e lisos, de esquiva:
silencioso ovo, se contornado nos dá a volta.
Mas há que força bruta o viole,
e sobre uma lamela de vidro,
a boca de um cão, um prato de cobre
tal golpe sofra a clarividência
– um direto, puf!, no nariz da consciência –
de haver um ovo podre desvendado.


terça-feira, 5 de julho de 2011

352 - das passagens, 24


Ela à beira do abismo, e deixou-se ir. Não caiu: foi apenas descendo, seu corpo deitado, o vestido branco e os braços estendidos ao lado, afundando no ar aos poucos, sem barulho, com um peso vagaroso e vago: uma poeira de mármore, o oco de uma nuvem de gesso, a pele de uma folha caduca, branca e rija, e pouco os cabelos se mexiam. Do alto, ele via aquela figura encolher, cada vez menor, até quase tocar o chão, quando então – ele sabia – ela desapareceria: mas subitamente um movimento invisível trouxe-a de volta ao topo, e ela ficou de pé, em silêncio, encarando-o como quem espera. Neste momento ele transformou-se num diabo: sua pele secou e rachou em veios fundos, cinzentos, o tom do corpo era verde. Vestia farrapos, estava descalço e rodava em volta de si, as costas curvadas e as palmas das mãos viradas para o céu. Na sua nuca uma voz falou duas vezes, deixando-o em completa solidão.