Tomaso pensa na história de Tomas. Há algo inquietante nisso tudo, absolutamente leve mas além das suas forças, do seu entendimento. É tudo tão parecido e ao mesmo tempo tão diferente. E se a sua história fosse uma repetição, apenas ligeiramente alterada, de uma outra história, vivida por outro, pensada por outro? E se as suas relações amorosas, seus dilemas e jogos não passassem de um encenar de novo uma mesma peça? Essa pergunta (nada original, é certo) não o abandona, e vai cavando, cavando, como se esvaziasse Tomaso, que de repente se dá conta de estar feliz, feliz como há muito não se sentia. Se a sua vida é uma mesma vida, é ainda uma vida (como, aliás, também deve ser a de Tomas), então está livre, pensa. Não porque tenha assim descoberto o destino ou a divina providência, mas, ao contrário, por pensar que essa repetição, a própria vida é oca, não tem substância, finalidade, nem um antes ou um depois. É oca porque não obedece a nenhum desígnio. É na verdade como um eco, ou um disco riscado que foi esquecido girando: e ele fica assim, até que a palavra cantada se desliga da canção e se torna algo diferente, uma coisa estranha. E essa coisa estranha, enfim pensa Tomaso, sou eu.
sexta-feira, 31 de dezembro de 2010
quinta-feira, 30 de dezembro de 2010
quarta-feira, 29 de dezembro de 2010
terça-feira, 28 de dezembro de 2010
164 – das novidades, 11
Felícia é uma mulher triste, triste mesmo. Chamam “Felícia”, e logo aparece uma figura com olheiras, ar pesado, voz arrastada, um nem aí com nada, se fede, se cheira, vive ou morre, é tudo a vida, a irremediável lamentação da vida. Em função dessa presença marcante, Felícia foi carinhosamente alcunhada de Hardy pelos amigos mais antigos. Muitos não entendem. Mas o curioso é que sempre que ouve esse nome sendo atribuído a ela, Felícia se sente como recebendo uma boa sorte, como um anúncio da sorte especialmente dirigido a ela. E nesses momentos ela ri, às lágrimas, alguns dizem “como criança”, enquanto outros, talvez com maior acerto, dizem “como uma hiena”. “Oh, vida...” é o que ela diz.
segunda-feira, 27 de dezembro de 2010
domingo, 26 de dezembro de 2010
sábado, 25 de dezembro de 2010
sexta-feira, 24 de dezembro de 2010
quinta-feira, 23 de dezembro de 2010
quarta-feira, 22 de dezembro de 2010
terça-feira, 21 de dezembro de 2010
segunda-feira, 20 de dezembro de 2010
156 – das atribuições errôneas, 8
Dois amigos no bar.
– Aquela ali, na mesa do lado, é a síndica do meu prédio.
– E que tal ela, é boa?
– Olha, pra idade que deve ter, até que é.
domingo, 19 de dezembro de 2010
155 – da adequação ao tempo, 15
– Natal também é tempo de oportunidades de negócios. É o caso desta autônoma. Você compra essas peças por quanto?
– Cinco, seis reais.
– E vende por quanto?
– Depende do cliente.
sábado, 18 de dezembro de 2010
154 – da adequação ao tempo, 14
Mudam novos vizinhos para o 202. Um casal. E tudo leva a crer que eles têm só uma chave para a porta da garagem. Sabe disso porque todos os dias, no fim da tarde, a mulher chega, estaciona o carro, liga o alarme e grita: “Renato!”. Às vezes duas, três vezes, quase sem dar tempo entre um grito e outro: “Renato!Renato!”. O Renato deve botar a cara na janela. Então a mulher redunda: “Abre aqui”. O carro fica com ela. A chave da garagem, com o Renato. Não entende a razão disso, mas imagina com certa facilidade – graças às suas lembranças da ex-mulher, provavelmente – uma complexa estrutura de poder e afetos que poderia regular a partilha dos bens – materiais, mas também simbólicos – na relação deles. De qualquer modo, pega birra da coisa. Primeiro passa a imitar a voz da mulher. Ela chega, estaciona e grita; então, da sala do 302, ele manda um eco deformado, mais estridente: “Renato!”. Justifica-se pensando que isso poderia causar algum embaraço nos dois, algum ridículo, de tabela colaborando com o silêncio, que anda cada vez mais raro no condomínio. Mas, no fundo, faz porque é divertido mesmo. Só que logo cansa da brincadeira. Cansa mais ainda dos vizinhos, já sabe exatamente qual o barulho do motor e o alarme do carro deles. Tem vontade de gritar mas para mandá-los à merda. Até que uma noite, uma quarta-feira de vários jogos importantes do campeonato, com o gol que não é nem do seu time, nem contra ele, num ímpeto corre à janela e, em meio aos rojões, desabafa com força: “Chupa Renatooo!”.
sexta-feira, 17 de dezembro de 2010
153 – das atribuições errôneas, 7
– Mãe, por que os casais dessa novela só conversam sussurrando?
– Xiu, menina, que eu não tô ouvindo nada!
quinta-feira, 16 de dezembro de 2010
152 – das biografias, 20
Iamuzu envia o achado para Paulo: o manuscrito, raríssimo, que primeiro reuniu a obra dispersa de um velho samurai que desistiu do seu ofício para fazer composições de contemplação à natureza, inaugurando um novo estilo poético. Iamuzu, na cartinha que segue junto na caixa bem embalada, se mostra eufórico e grifa que tudo no gesto desse artista confirma a fluidez e a simplicidade das imagens, como se os traços traduzissem em uma linguagem encantada o mistério inatingível dos rios mais serenos.
Verão nos trópicos, chuvas torrenciais. Com a enchente na avenida, o bói é arrastado, e a moto, e a entrega com o adesivo “frágil – cuidado”, e tudo mais, para um bueiro, que logo entope. Quando, depois de semanas, Paulo finalmente recebe a caixa, o manuscrito resume-se a alguns borrões informes que conservam o pouco que sobrou da tinta original. A caligrafia dos rios virada num leve cheiro de esgoto que não passa.
quarta-feira, 15 de dezembro de 2010
terça-feira, 14 de dezembro de 2010
segunda-feira, 13 de dezembro de 2010
domingo, 12 de dezembro de 2010
sábado, 11 de dezembro de 2010
sexta-feira, 10 de dezembro de 2010
quinta-feira, 9 de dezembro de 2010
quarta-feira, 8 de dezembro de 2010
terça-feira, 7 de dezembro de 2010
143 – das atribuições errôneas, 6
– Pai, o que você faz parado aí?
– Olha: “vendo esta casa”.
– Ué, mas pra que ficar vendo ela?
segunda-feira, 6 de dezembro de 2010
142 – das atribuições errôneas, 5
O evangelista caminha a estrada seca e deserta. Sente fome, sede e cansaço, mas segue. Avista ao longe um casebre. Quando perto, distingue as letras rústicas, feitas com tijolo, sobre a parede: “Temos almoço”. Ele bate palmas. Uma velha aparece. “Minha senhora, eu tomarei a sua atenção por um breve instante. Tenho apenas dois pedidos. Por favor os ouça. O primeiro é a piedade de oferecer-me um copo d’água. O segundo, mais importante, é para que a senhora e os seus não desistam. Orem bastante, e tenham fé, que com a graça do Senhor um dia vocês terão a janta também”.
domingo, 5 de dezembro de 2010
141 – das novidades, 10
Ator Maravilhoso
Adorei a reportagem com o ator Maximiliano Trípolli na coluna Bate-Papo. Eu adoro o ator e me apaixonei pelo personagem Francisco Apolo em Coração Ardente. Pena que ele morreu logo no início da trama.
Sheyla Suzanna de Medeiros – Três Talhos da Serra
sábado, 4 de dezembro de 2010
140 – das novidades, 9
Alguém pode estar controlando sua mente sem você saber.
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sexta-feira, 3 de dezembro de 2010
quinta-feira, 2 de dezembro de 2010
138 – das biografias, 19
A testa constantemente ensebada empresta ao rosto de Edgar um aspecto que é algo esquivo. Na verdade, é essa área meio sem sentido que parece escorregar entre o que é propriamente testa e o que é, já, cabeça. Os fios do cabelo partido decidem por dar às vezes mais campo a uma ou outra. Mas como são soltos numa ponta e variam de acordo com o dia, fica esta impressão de um limite que escapa: como se o sentido desse espaço escorregasse, de fato, cabeça e testa abaixo, depois pelo nariz mais afinado e ligeiramente torto, para se sustentar, enfim, nos fiapos do bigodinho. Mas isso é sempre provisório, pois a inquietação persiste. E aquela região cresce sobre o resto do rosto e do corpo, toma conta de tudo, do ambiente ao redor, da máquina que fotografa Edgar, dos olhos que o encaram, da terra que ele pisa, do ar que respira. Agora há um imenso espaço indeterminado, como se vazio, muito silêncio e uns fios de cabelo desgrenhados. Em poucos segundos um bando de gatos aterrissa. Cada um deles se chama Wil, é preto e traz em seu pescoço um barril cheio de areia.
quarta-feira, 1 de dezembro de 2010
137 – das biografias, 18
Valentina é das mais divertidas. Nesta manhã ensolarada, ela pedala pela orla acompanhada de uma amiga e a brisa do mar. Sua bicicleta tem uma cestinha rosa, e cobrindo os cabelos ela leva um boné azul bordado com a jovial inscrição get lost! ao lado de uma figura feminina que faz uma careta mostrando a língua. Valentina conta para a amiga, de maneira muito leve, a engraçada história de um tal Chesney, seu apaixonado confesso. “Você acredita que ele dizia assim: Você me faz sorrir com o coração... Você acredita?” A amiga ri, faz que não com a cabeça, pedalando no mesmo ritmo. Para trás, na sombra de um quiosque, na sacada de um prédio, além das pesadas cortinas vai ficando o tal Chesney, que sorriu até o coração secar, virar pó ou explodir.