sexta-feira, 27 de abril de 2012

649 - das condições de leitura, 49


intermitências, de cristiane lindner


“com sua força frágil, com seu débil insistir, a intermitência desfaz a essência”, escreve uelga josé-josé em seu tratado sobre o soluço, publicado no final do século XVI. que a vida sensível – isto é, ao menos deste modo em que a vida pode ser entendida ou ficcionalizada – se a-presente por meio de pulsações, repetições, cintilações, ritmos indomesticáveis de aparecimento e desaparecimento, enfim, isso apenas reforça um pensamento não essencialista da existência. intermitências (2016) é o mais recente trabalho de cristiane lindner. considerado como uma sequência das explorações de meu coração, looping (2015), o vídeo é menos uma obra acabada do que uma documentação das experiências da artista durante uma residência em ribeirão preto, interior de são paulo, no final do último semestre. e nesse sentido, quer dizer, como documento, o vídeo não deve ser entendido como peça autônoma: segundo a artista, ele é “desde já um ponto, apenas, numa rede de outros elementos, todos eles articulados”. com efeito, intermitências foi pensado como parte de uma instalação que traria documentos a respeito do tradicional ciclo do café e da monocultura industrial da cana-de-açúcar, com imagens de boias-frias e outros trabalhadores rurais, assim como referências às primeiras famílias produtoras de cerveja artesanal na rica cidade (há tempos, como se sabe, um importante centro da indústria cervejeira no país), em sua maioria famílias modestas de imigrantes italianos. o vídeo é ao mesmo tempo explícito e enigmático: como se numa noite cerrada sobre a terra e ao som ritmado de (quem sabe) sapos coaxando surgissem pequenas luzes que cintilam ao longe, relâmpagos silenciosos ao acaso e uma ondulação que vagamente desloca o latifúndio interiorano para as vagas de um oceano aberto (quanto a isso, é notável a inflexão que investe uma genealogia filosófica e crítica que passa por nietzsche, benjamin, bataille, didi-huberman, agamben etc.). lido em constelação com os demais documentos da instalação, aponta, talvez, para uma sorte de eterno retorno, para o que insiste na história ou contra ela – entre a violência do “progresso” e a necessidade de reparação – e toca intimamente os corpos, as existências. extremamente desigual na distribuição de sua riqueza (o que se vê na proliferação tanto de condomínios de luxo como de miseráveis nas ruas), ribeirão preto encontra singular sobrevida no trabalho de cristiane lindner: a oportunidade, a exigência no mínimo tempo de um pulso, de um soluço, de um relâmpago, de uma voz qualquer colada à terra, recontando a história.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

648 - das condições de leitura, 48


monstros, de cristiane lindner










como se sabe, a genealogia dos bestiários é vária e antiquíssima; nela, ovídio ofereceria apenas um dos começos possíveis, já que retoma referências metamórficas anteriores. quer dizer, com faturas e acabamentos bem distintos, muitos trataram das bestas, dos monstros, transformando-os numa sorte de topos para o pensamento do limiar. em uma de suas mais frequentes experimentações com uma linguagem que transita entre a escultura, a toy art e o artesanato com tecidos, cristiane lindner parece propor um diálogo produtivo com essas figuras que, desde a noite dos tempos, tecem ficções especulativas sobre os contágios entre espécies, esferas, imagens, explorando os limites do humano – e as limitações do humanismo – através de figurações do impróprio e do indomesticável. os monstros de cristiane lindner apresentam com recorrência alguns aspectos notáveis: ausência de cabeça e, portanto, ausência de um corpo que possa ser reduzido a qualquer imposição capital; pluridirecionalidade e falta de simetria nas estruturas que, a rigor, são assim apenas debilmente estruturadas; distanciamento de qualquer semelhança estritamente antropomórfica, o que vale também para as dimensões e cores utilizadas. significativo, ainda assim, é o fato de a artista ter manifestado vivo interesse pelo interior do corpo humano (daí as pranchas com ilustrações, algumas de cunho científico), assim como pelas teorias da antropofagia. tal interesse pode ser perfeitamente destacado também em outros trabalhos, como em sua vídeo-performance meu coração, looping. como inicialmente os bichos de lygia clark, os monstros devem ser manuseados. as crianças parecem ser especialmente seduzidas por essas formas pouco óbvias, testando a maciez e a aspereza dos tecidos, a firmeza e a plasticidade dos enchimentos, enfim, a familiaridade e a perturbação do encontro com aquilo que desvia a norma identitária e a fixidez representacional. com as costuras e os diversos enxertos, surgem em camadas, sem dúvida com o tom da ironia ou do pastiche, as referências ao problema prometeico, tal como tratado por mary shelley, por exemplo. não obstante, também aqui a aposta não é apaziguadora, o que se evidencia na exposição das suturas e dos interiores opacos de algumas formas. sobretudo, trata-se do problema pós-humano, anunciado pelos trabalhos de inúmeros artistas, como jacques lipchitz, maria rubinke, patricia piccinini, angelika arendt, walmor corrêa etc.; assim como pelos pensamentos de georges bataille, kafka, juan josé arreola, wilson bueno, borges, vilém flusser (principalmente em seu tratado sobre o vampyroteuthis infernalis), rafael alonso, josé gil ou jacques derrida, entre outros. os monstros contagiam os astros: mostram o que há de cosmético no cosmos.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

647 - das condições de leitura, 47




meu coração, looping (2015)
uma vídeo-performance de cristiane lindner
















a vídeo-performance meu coração, looping (2015) de cristiane lindner retoma e desdobra alguns dos procedimentos mais caros à artista, reconhecíveis, por exemplo, em arqueologia de um tempo qualquer. assim, a citação – nem sempre explícita –, o comentário, a apropriação e a atribuição errônea convivem como recursos limiares, a rigor não discerníveis, assim como a contingência e a precariedade dos sentidos e da matéria são elementos que assumem um caráter ao mesmo tempo construtivo e destrutivo. na vídeo-performance – realizada em desterro, hoje mais conhecida como florianópolis, em infame homenagem ao marechal floriano peixoto – as alusões ou afinidades com proposições como as de christian boltanski, nuno ramos, miguel rio branco, andrés denegri, rosângela rennó, entre outros, podem ser percebidas para além do plano formal. o vídeo (do latim video: “eu vejo”), como se sabe, aponta sempre para uma espécie de vazio (no francês vide). em certo sentido, trata-se aqui de uma busca, mas também de uma fuga: uma corrida que se apresenta de modo velado: indecidível entre o fitness e a escapada, entre o bem-estar e risco de vida, é o ritmo algo acelerado – dos passos, da respiração, do coração – que tange esse nomadismo arriscado, despersonalizado e possivelmente sem fim, algo que é reforçado com o loop do registro do caminho percorrido. uma proposta ética parece acompanhar tais imagens vertiginosas: afinal, nas imagens eu vejo meu coração batendo fora de mim.

segunda-feira, 16 de abril de 2012