monstros, de cristiane lindner
como
se sabe, a genealogia dos bestiários é vária e antiquíssima; nela, ovídio ofereceria
apenas um dos começos possíveis, já que retoma referências metamórficas anteriores.
quer dizer, com faturas e acabamentos bem distintos, muitos trataram das
bestas, dos monstros, transformando-os numa sorte de topos para o
pensamento do limiar. em uma de suas mais frequentes experimentações com uma
linguagem que transita entre a escultura, a toy art e o artesanato com
tecidos, cristiane lindner parece propor um diálogo produtivo com essas figuras
que, desde a noite dos tempos, tecem ficções especulativas sobre os contágios entre
espécies, esferas, imagens, explorando os limites do
humano – e as limitações do humanismo – através de figurações do impróprio e
do indomesticável. os monstros de cristiane lindner apresentam
com recorrência alguns aspectos notáveis: ausência de cabeça e, portanto,
ausência de um corpo que possa ser reduzido a qualquer imposição capital;
pluridirecionalidade e falta de simetria nas estruturas que, a rigor, são assim
apenas debilmente estruturadas; distanciamento de qualquer semelhança estritamente
antropomórfica, o que vale também para as dimensões e cores utilizadas. significativo,
ainda assim, é o fato de a artista ter manifestado vivo
interesse pelo interior do corpo humano (daí as pranchas com ilustrações,
algumas de cunho científico), assim como pelas
teorias da antropofagia. tal interesse pode ser perfeitamente destacado também em
outros trabalhos, como em sua vídeo-performance meu coração, looping.
como inicialmente os bichos de lygia clark, os monstros
devem ser manuseados. as crianças parecem ser especialmente seduzidas por essas formas pouco óbvias, testando a maciez e a aspereza
dos tecidos, a firmeza e a plasticidade dos enchimentos, enfim, a familiaridade
e a perturbação do encontro com aquilo que desvia a norma identitária e a
fixidez representacional. com as costuras e os diversos enxertos, surgem em
camadas, sem dúvida com o tom da ironia ou do pastiche, as referências
ao problema prometeico, tal como tratado por mary shelley, por exemplo. não
obstante, também aqui a aposta não é apaziguadora, o que se evidencia na
exposição das suturas e dos interiores opacos de algumas formas. sobretudo,
trata-se do problema pós-humano, anunciado pelos trabalhos de inúmeros
artistas, como jacques lipchitz, maria rubinke, patricia piccinini, angelika
arendt, walmor corrêa etc.; assim como pelos pensamentos de georges bataille, kafka,
juan josé arreola, wilson bueno, borges, vilém flusser (principalmente em seu
tratado sobre o vampyroteuthis infernalis),
rafael alonso, josé gil ou jacques derrida, entre outros. os monstros contagiam
os astros: mostram o que há de cosmético no cosmos.
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