intermitências, de cristiane lindner
“com
sua força frágil, com seu débil insistir, a intermitência desfaz a essência”,
escreve uelga josé-josé em seu tratado sobre o soluço, publicado no final do
século XVI. que a vida sensível – isto é, ao menos deste modo em que a vida pode
ser entendida ou ficcionalizada – se a-presente por meio de pulsações,
repetições, cintilações, ritmos indomesticáveis de aparecimento e
desaparecimento, enfim, isso apenas reforça um pensamento não essencialista da
existência. intermitências (2016) é o mais recente trabalho de cristiane
lindner. considerado como uma sequência das explorações de meu coração,
looping (2015), o vídeo é menos uma obra acabada do que uma documentação das
experiências da artista durante uma residência em ribeirão preto, interior de são paulo, no final do último semestre.
e nesse sentido, quer dizer, como documento, o vídeo não deve ser entendido
como peça autônoma: segundo a artista, ele é “desde já um ponto, apenas, numa
rede de outros elementos, todos eles articulados”. com efeito, intermitências foi pensado como parte de uma
instalação que traria documentos a respeito do tradicional ciclo do café e da monocultura
industrial da cana-de-açúcar, com imagens de boias-frias e outros trabalhadores
rurais, assim como referências às primeiras famílias produtoras de cerveja
artesanal na rica cidade (há tempos, como se sabe, um importante centro da
indústria cervejeira no país), em sua maioria famílias modestas de imigrantes italianos.
o vídeo é ao mesmo tempo explícito e enigmático: como se numa noite cerrada sobre
a terra e ao som ritmado de (quem sabe) sapos coaxando surgissem pequenas
luzes que cintilam ao longe, relâmpagos silenciosos ao acaso e uma ondulação
que vagamente desloca o latifúndio interiorano para as vagas de um oceano
aberto (quanto a isso, é notável a inflexão que investe uma genealogia filosófica
e crítica que passa por nietzsche, benjamin, bataille, didi-huberman, agamben
etc.). lido em constelação com os demais documentos da instalação,
aponta, talvez, para uma sorte de eterno retorno, para o que insiste na
história ou contra ela – entre a violência do “progresso” e a necessidade de
reparação – e toca intimamente os corpos, as existências. extremamente desigual
na distribuição de sua riqueza (o que se vê na proliferação tanto de
condomínios de luxo como de miseráveis nas ruas), ribeirão preto encontra singular
sobrevida no trabalho de cristiane lindner: a oportunidade, a exigência no
mínimo tempo de um pulso, de um soluço, de um relâmpago, de uma voz qualquer colada
à terra, recontando a história.
Nenhum comentário:
Postar um comentário