sexta-feira, 9 de setembro de 2011

418 - das passagens, 29



Ensaia como coçar a casca:

“Se há um ideal de família em que eu apostaria como modelo de felicidade é o da família de amigos: amigos são vários, sem limite de número ou restrição para as trocas, cada um no seu canto, com sua solidão, suas manias e caprichos irremediáveis, mas juntos por livre vontade quando querem, sem cobranças pela presença ou ausência, sem laços de sangue perpétuos, sem necessidade de procriação, sem responsabilidades além da livre doação da própria amizade, em todas as suas declinações queridas e seus gestos, e enquanto ela dura, perto ou longe, às vezes mais intensa e constante, outras vezes mais espaçada e leve, às vezes bem curta, outras vezes ao longo da vida inteira.”

terça-feira, 6 de setembro de 2011

415 - das passagens, 28



Neste exato momento, tenho cãibras no lado esquerdo da testa. Olhando no espelho, é como se enfim eu tivesse a coordenação necessária para erguer apenas uma das sobrancelhas. Mas o involuntário do movimento (e sua repetição) empresta à cena algo de ridículo, de doentio, de demoníaco ou de absolutamente ordinário: com a cara meio embasbacada e inerte, fico esperando quando virá à tona, nessa minha testa, a próxima série de contrações, comandada – é o que parece – por um corpo estranho, ao menos por uma vontade que não é minha e me surpreende. Finalmente, levantando a sobrancelha esquerda mais uma vez (e mais uma e outra e outra... e outra), como se num acesso de perspicácia, baixo a vista e, meio perdido, penso quantas vezes já não se terá contraído, sem eu querer, esse coração aqui. E já nem sei se devo dizer assim, que o meu coração bate alheio. Acho que só pode bater tanto, mesmo, porque ele é alheio, porque não depende de mim.

sábado, 3 de setembro de 2011

412 - das visões de mundo, 28



e será preciso sair, e sofrer
a saída, e assim,
sem saber de ir, sem saber
horizonte linha périplo peripécia

possível volta, e sem saber
com certeza quando isso tudo,
a saída, meu bem,
quando terá começado?

as listas da camisa de flanela escorreram
das mangas para a palma da sua mão?
mas então seus braços já vinham assim,
lassos, há muito tempo

quem sabe de brincar com as coisas sérias,
e de brincar com a brincadeira
com as coisas sérias, e
de brincar...

quem sabe um banjo? um bandolim?
essas vozes no corpo de um robô de barro?
e rodar rodar rodar, e bater com força
o coração na terra

ou será preciso ter calafrios de pensar
em morrer agora, agora mesmo,
qualquer hora dessas ou em uma, duas,
em poucas palavras,

morrer assim, meu bem,
já de saída?