Não lê alemão. Não tem a mínima ideia. Mas as letras assim dispostas, Sternstunden der Menschheit, ele as acha comoventes. Não só a disposição das letras, para ser preciso, mas o som dessa sequência, dessa colisão, que ele tenta adivinhar em sua pronúncia e voz. Sente algo grandioso, uma promessa, e também algo bárbaro, ameaçador, primordial. Repete ainda uma vez mais: Sternstunden der Menschheit. Sim, há nessas letras uma beleza inquietante, como se pudesse ver rapidamente a imagem das tripas de alguém dilacerado.
sábado, 31 de julho de 2010
14 – das adivinhações, 2
sexta-feira, 30 de julho de 2010
quinta-feira, 29 de julho de 2010
12 – dos testemunhos
Agora pode ver que seria preciso um grande público, com sonhos, palavras e talvez amêndoas para todos. Que seria preciso, ainda, munidos de tacapes, esses velhos atores que há muito ignoram a sua condição. E seria preciso luz e cenário improjetáveis, lumínulas lisas, quem sabe, uma bandeira puída e franca, risível, e os jovens. Porque deve haver nisso tudo um incômodo som bonito e inconsequência. Assim começa o ensaio, no ato desabalado do acontecimento. E se cumpre perfeito, feito de deixas e furos e
quarta-feira, 28 de julho de 2010
11 – das formas do vazio
Ouve o deputado federal de conduta questionável professando sua fé na lei dos homens e nos homens que a leem. “Só Deus me tira da vida pública”, ele garante.
terça-feira, 27 de julho de 2010
segunda-feira, 26 de julho de 2010
9 – do despertar para a linguagem
Acorda com o vizinho de cima arrastando algum móvel.
Vira de lado.
Volta a dormir pensando na redundância.
domingo, 25 de julho de 2010
8 – das condições de leitura
No meio da exposição, a obra é uma poltrona de cristal. De tamanho exagerado, ao lado, uma placa que diz:
Por favor, não toque.
Achou que era provocação do artista. Arte contemporânea. Sentou. E a poltrona partiu-se em cacos.
Um deles ficou-lhe fundo o traseiro. Da exposição foi para o pronto-socorro, depois para o B. O. na delegacia.
O processo segue aberto: não se sabe quem deve ser indenizado.
sábado, 24 de julho de 2010
7 - das atribuições errôneas
A festa quase no fim, e a noite fria, mas a criança ainda acesa: menina chega correndo à mesa com um copo de refrigerante.
Para se distrair com a ingenuidade, sorri e pergunta a ela: do que é esse refrigerante aí?
E o fim da festa: ora, é de beber.
sexta-feira, 23 de julho de 2010
6 - da adequação ao tempo, 3
Renomado escritor de best-sellers, fenômeno mundial, está na cidade oferecendo curso para o segmento de novos autores que visam o público consumidor de autoajuda. Promete intensivo (os encontros acontecerão em 3 manhãs, das 9h30 às 12h, no famoso jardim do hotel Incredible Garden) com técnicas infalíveis, tanto de escrita quanto de promoção. Vagas limitadas. Pagamento facilitado. Aceita cheques de terceiros e permuta por sessões de análise.
quinta-feira, 22 de julho de 2010
5 - da adequação ao tempo, 2
A concorrência é imediata: cada sacola plástica vale um ponto; cada chute na cabeça, dois. E cada chute na cabeça de quem utiliza sacola plástica... parcelamento extra, estacionamento grátis e caixa preferencial.
quarta-feira, 21 de julho de 2010
4 - da adequação ao tempo
A nova campanha diz: cada sacola plástica vale um ponto; cada chute na cabeça, dois.
Seu nível de consciência e espiritualidade não permite que chute cabeças.
Considera: se estiverem envolvidas em sacola plástica.
terça-feira, 20 de julho de 2010
3 - da hominização
Vê que em algum lugar do mundo, talvez na Lua, um esqueleto enorme se arma verticalmente, concreto, e o tecido que o envolve, ora azul ora branco, deve ser firme e fluido, placenta ao vento, como ao vento os fios de eletricidade, os elevadores, a gravidade. E o vento forte.
segunda-feira, 19 de julho de 2010
2 - das adivinhações
O porteiro se chama seu Acílio e tem um espesso bigode.
Quando passa, recebe das mãos de seu Acílio outro envelope grosso. É livro é senhor? Tanto livro o senhor recebe. Ou é eletrônico? O senhor não é engenheiro?
De dentro do elevador vê que o porteiro enfia a mão por dentro das calças para se coçar.
Desta vez, a inscrição na face do estranho sólido diz “espessa vida”.
domingo, 18 de julho de 2010
1 - das passagens
Dor no braço esquerdo. Tanto controle, tanto cuidado se agora morre assim novo. Não morre? Morre sim, não de uma vez.
No mesmo instante pela janela um vulto pesado.
O silêncio dura o tempo do suor aparecer na palma da mão.