quarta-feira, 22 de junho de 2011

339 - das passagens, 23


O saldo foi o seguinte: amparado pela fluência da tradutora russa, o ornitólogo mostrou-se bem convincente na exposição de sua teoria. Por meio do que o especialista definiu ser o “espelhamento especulativo”, todos ficaram achando que beija-flores e humanos, cada um a sua maneira, compartilham uma existência intimamente ligada à experiência não-linear do tempo. Aliás, na retórica do ornitólogo, essa expressão – “espelhamento especulativo” – ia muito além da estranha redundância, revelando-se mesmo pertinente e instigante. Era algo como vislumbrar o caráter humano a partir de um mimetismo do inumano, ou em outras palavras, refletir sobre o que é dos homens a partir do espelhamento do que é característico dos beija-flores. Na outra ponta da mesa, para ele essa ideia de mimetismo pareceu ser especialmente sedutora. Conforme via os lábios da tradutora se mexendo, em harmonia com os demais gestos do corpo, ele sentia que o seu próprio corpo vibrava muito rápido, numa velocidade muito maior do que aquela que os olhos nus são capazes de ver. O tempo fugia em câmera lenta, ou apenas estava suspenso no ar. Enfim seu corpo desaparecia em centenas de palpitações por segundo, e todo o seu ser se desmanchava, sendo soprado com o vento por sobre os outros convidados, por sobre a mesa e as flores do mundo, indo aos poucos enredar-se nos pelos, nos poros e cabelos daquela criatura de fogo, que dominava todas as línguas e todos os tempos, consumindo os homens como quem traz uma boa nova.


terça-feira, 21 de junho de 2011

338 - das visões de mundo, 17


A você nua eu falo de um desenho. Digo do que me agrada, do que a sombra revela e o incômodo: uma mulher nua, a sombra crua cobre todo o tronco cansado e os ossos, os ombros, os seios vazios que se deitam vencidos, se dobram, acompanham a longa curva da barriga e não se projetam: a barriga vazia é estufada e tesa; dos seios, o leito. É só o que aparece. Eu falo da sombra, do desenho sem rosto, sem traços, braços e pernas, resumido ao escorrido – dos seios baços que se prolongam sobre o relevo do corpo de eras, e antes adivinho que margeiam o umbigo insulado, quedam-se das encostas do ventre, ao fim das costas escapam, enroscam-se nas coxas e se entornam no chão de terra, moles, a língua da noite a trocar de pele. Escoados na poeira seca. Seios de mulher, mas só um tronco. Eu digo que ela está morta e ainda agora se queixa do peso dos anos: não os solta. Carrega esse peso que fica: a sombra crua, longos anos, o couro curtido dos seios, longos, trançados, os cabelos de um azul-tição. Nua você se olha no espelho, acho que não ouve, e veste a camisola transparente. Sem demora quer que eu tente outras coisas, um filme romântico talvez, ou vinho de mesa suave: algo doce. Mas o grafite, carvão queimado, permanece: a fogo o carbono afaga a sombra viva, um tronco cansado, os ossos, os seios grossos fios de água parada, vertendo até o fim, os bicos pretos – dos urubus.


segunda-feira, 20 de junho de 2011

337 - das visões de mundo, 16


Você ergue a faca, trespassa a longa ponta em meus olhos (e eu, distante em inconsciente ponte, vejo formigas dali saírem, diminutas faíscas negras). Tudo para trazer-me ao lume de alguma cegueira, de alguma febre ou fome de você inteira que senti no início de tudo que passa, de nós e antes. Fracassa. Nesta hora, tarde do dia, é a sobremesa que comemos, ela já quente de tanto se fazer doce, tanto, e rente às bordas do desaguado leito, escasso do sexo e do peito em descompasso, de tanto aguardar nosso apetite. A apatia é um prato que procria calmo, é o mormaço. E o que sorvemos é fumo, o fundo e o osso, enquanto o consumo de sonhos ao redor do mundo decresce. Você se abisma, não crê nas geografias que os mapas nos obrigam a seguir, nem na possibilidade de uma terra habitada apenas por um faquir: ele engole peixes-espada e arrota poemas-ouriço, sublimes nos múltiplos gumes que oferecem – ora veneno, ora uma prece. Mas eu trago esses números novos, notícia recém-raspada do liso de uma oficina lítica, para adverti-la: há tempos não há esperança em nosso projeto, e nós dois, humanos, acumulamos dejeto e trocamos bilhetes sigilosos para aplacar alguma alegria descabida, acautelados na vida por não vivermos em época própria para extravagâncias.


domingo, 19 de junho de 2011

336 - das visões de mundo, 15



Surdina


luz talvez seja cigarro

quase aceso

apagado


se insinua, rubra, lábio

menos vermelho


caberia um sopro, ainda

entre beijo e fôlego

um gole, sobre a conversa

de ontem


eu digo quase você, quase

triste
, você entende
se levanta e sai



sábado, 11 de junho de 2011

sexta-feira, 10 de junho de 2011

327 - das visões de mundo, 14

Manhã

quase todas as formas de dizer

e de calar etc.

quase tudo me leva

a crer que é impossível.


quando você acorda inteira

e demasiadamente física

há uma coisa qualquer

que se perde, quase

tudo.


mas quando você e os pés, pendurados

na ponta das pernas penduradas

na beira da cama, sem tocar o chão,

como criança:


é preciso dar um passo

e dois bem-te-vis ensaiando voo

em seus ombros, para quem sabe

nada, quase nada

mesmo.

quinta-feira, 9 de junho de 2011

326 - das visões de mundo, 13


Do afeto (escavação) // Buscado na água do corpo / e mais dentro e mais fundo / no corpo como quem toque / da água a sua própria água / Ou ainda mais dentro e fundo / no corpo como quem queira / na água da própria água / tocar a água da sua seiva // Mas vai tão fundo e dentro / no corpo que todo contato / faz água se buscado demasiado / profundo: a superfície mesma / para que se doe e revele / mergulha no seco da seiva / no céu dessa água – // a pele


segunda-feira, 6 de junho de 2011

323 - das passagens, 22


Uma canção em divehi. Em mandarim. Em quimbundo. Em grego. Em russo. Em português. Era assim que ele não entendia. Era assim: ela olhava para ele, eles conversavam, e ele já não sabia nada, não era nada. Ele morria nesse olhar. Então havia nuvens sobre os corpos e dentro do seu corpo. Havia ondas. Desertos. Florestas. Silêncio. Poeira. Estrelas colidindo. Toda a raridade de que o universo está cheio. Tudo bem ali, naquele olhar: o fim da vida. Então ele sorria e respondia, sumindo, cantando o seu desentendimento: em urdu, em romani, em iídiche, em norn, em tupi-guarani, em português.